terça-feira, 24 de junho de 2008

O julgamento do homem absurdo.

Um dia apenas o "porque" desponta e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto. "Começa", isso é importante. O cansaço está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o movimento da consciência. Ele a desperta e desafia a continuação. A continuação é o retorno inconsciente à mesma trama ou o despertar definitivo. No extremo do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou restabelecimento. Em si, o cansaço tem alguma coisa de desanimador.

[CAMUS; Albert – O Mito de Sísifo]



Vocês me roubaram a juventude, classificando como fase a minha revolta e autenticidade. Vocês querem que eu me sinta feliz por estar incluído num jogo que me foi empurrado, e que entrei gritando, rejeitando, desde o primeiro segundo. Vocês me tratam como boi, categorizam a minha existência com essa infinidades de etiquetas e marcas. "Sei" que sou Homem, que faço parte de uma determinada classe social, tenho esse ou aquele comportamento por causa das roupas que uso, e dos lugares que frequento. Vocês querem que eu acredite que este sapato expressa a minha confiança, dizemque essa cor de camisa representa o meu grau de virilidade. Vivo num mundo que vocês criaram, e eu não sou artista, nem estamos na renascença. Não posso ser louco e andar pelas ruas livremente.

Eu, assim como vocês, participo desse jogo da seriedade, que mascara a coragem de qualquer pessoa que sente o absurdo da própria condição existencial, e que poderia ser diferente, eu disse ser, não ter. Não acho que esse mundo tem concerto, e que pode ser melhor, eu não tenho com o que comparar, sou cria de vocês, e desde que me entendo por gente, as coisas foram sempre assim em todos esses lugares que me sinto verdadeiramente estrangeiro.

As soluções que são necessárias para a sustentabilidade da minha existência, não virão se eu matar todos os burgueses e deixar apenas alguns milhares de comunistas no mundo, até porque, eu odeio comunistas, pra mim, estamos realmente vivendo num comunismo estético, comportamental, ideológico. A ditadura está aí, e eu sou um proletário de merda, igualzinho ao filho da puta do meu vizinho. Estou alienado não apenas do que produzo, mas de mim mesmo, do mundo que vocês brilhantemente inventaram, e que por mais que eu, ele, ela, falemos mal dessa torre de Babel, ainda assim nós apaixonadamente louvamos essa civilização, essa cidade, essa teia de aranha, o pedaço de céu entre os prédios, o cheiro dos mendigos, os preconceitos, tudo!

Nesse país existem centenas de aldeias indigenas, dezenas de tipos de MST. Eu poderia ter comida de graça, casa para morar, criar meus filhos, e trabalhar no máximo quatro horas por dia, para depois dançar o quanto eu quisesse! Nada farei nada disso. Prefiro ficar aqui. Absurdo, não acham? Eu odeio o sistema, eu amo o sistema! Vocês aí sentados, vocês legitimam essa violência, eu ajudo vocês! 1984 é 2008, você é brother, ela é brother, você me controla, eu controlo você, eu sou o sistema, eu sou o grande irmão. Ah! Não! Me soltem, eu não quero ir! Me tirem daqui! Canalhas, seus merdas, perdão! Eu aceito!

"Você falhou"

PICASSO, Pablo: Guernica (óleo sobre tela - 1937)

4 comentários:

Anônimo disse...

"Não acho que esse mundo tem concerto, e que pode ser melhor, eu não tenho com o que comparar, sou cria de vocês, e desde que me entendo por gente, as coisas foram sempre assim em todos esses lugares que me sinto verdadeiramente estrangeiro."

Pra quem leu O Estrangeiro de Albert Camus, entende a idéia..mas eu com a mania de sempre acreditar num amanhã melhor prefiro discordar(apenas dessa frase).No mais o texto é daqueles que nos levam a refletir sobre o assunto (algo fundamental na minha opinião), afinal ler não deve ser apenas uma forma de distração mas também uma forma de adquirir mais cultura e abrangir mais pontos de vista diferentes.

Adorei!

Ani Cristina Bariquello disse...

Um de seus melhores escritos, indiscutivelmente.

Lembro que no início de nosso relacionamento, sequer havíamos nos beijado ainda, havia sido uma noite estranha, talvez hoje, para mim, esteja mais clara a razão pela qual você ainda assim foi almoçar comigo. Pois bem, você estava mal humorado, convido-me para almoçar, eu disse que gostaria de escovar os dentes antes, você estava apressado, resolvi ir sem escovar os dentes mesmo, você também o fez.
Sei lá, desde quando eu era criança minha mãe ficava furiosa se eu tomasse café da manhã sem escovar os dentes, e eu pensava que aquilo fosse o comportamento adequado.
Eu lhe perguntei:
- Vai almoçar sem escovar os dentes?
Você respondeu:
- Você se importa com isso?
Eu disse que não, porque realmente não me importo, mas é estranho, porque como minha mãe obrigava-me a fazer aquilo e realmente ficava irada se eu não o fizesse eu pensava que todas as outras pessoas do mundo dessem tamanha importância ao ato, descobri que não.
A forma como olhamos para a pessoa com quem estamos falando, e se vamos ao supermercado de pantufa, se penteamos o cabelo, se reciclamos lixo, se comemos carne, se gostamos de rock ou de música sertaneja, se somos de esquerda, ou direita e se votamos ou não, acreditamos ou não em deus, se somos cristãos, se nosso comportamento é ecologicamente correto, se saímos à rua de salto alto, se somos heterossexuais ou não, quem deve lavar a louça, quem pode usar cueca, quem aborda quem em uma balada, se furamos fila, se temos tatuagem, se podemos ir trabalhar de mini-saia, quem deve ser frágil em uma relação, quem chora, quem assiste televisão, quem gosta de dor, quem paga a conta no restaurante...
Somos julgados quando respiramos, quando falamos, somos julgados por viver dentro de um grupo que escolheu como devemos viver e pensa que não fala, se estamos entre os que falham, também falhamos..., todos, o tempo todo, eu e você, e todas as pessoas que amamos, porque não há quem suporte respeitar regras e parâmetros que não escolheu, o tempo todo.

DIEGO AUGUSTO MÉLO disse...

O Homem, depois que fica consciente do sentimento do abusrdo, manifesta reações ao mundo com pura indiferença, tem noção de limites da própria razão. Porém, ele Nega a possibilidade de fuga. Fuga que culturalmente falando, significa Covardia, mas que a meu ver poderia ser interpretada como coragem, ruptura, transvaloração, progresso. Se reclamamos tanto da sociedade, porque não vamos embora? O sistema nada pode fazer contra o abandono, não pode mandar policiais nos trazerem de volta.

Kaetanus disse...

Demorei para responder pois meu blog estava por um tempo abandonado.
Estarei presente sempre aqui, pode contar com isso.
O pouco que li, apenas este tópico, adorei...

grande abraço

kaetanus (cinestroika.blogspot.com)

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