terça-feira, 29 de abril de 2008

Da raíz equivalente ao devir filosófico.

" Tereza tentava ver-se através do corpo. Por isso passava horas à frente do
espelho. [...] Não era a vaidade que a atraía para o espelho, mas o espanto de lá descobrir o seu eu. Esquecia-se de que o que tinha diante dos olhos era o quadro de comando dos mecanismos físicos. Parecia-lhe que o que se lhe revelava sob os traços do rosto era a sua própria alma."

Milan Kundera - A insustentável leveza do ser

O ato de olhar-se no espelho, é uma prática comum para grande parte da população, não é algo perturbador como foi ouvir o rádio pela primeira vez tocando sua música favorita há décadas atrás, ou assistir à televisão quando ela ainda era raridade até mesmo entre os ricos. Mas eu convido você a fazer um exercício de abstração, tente imaginar que um dia as pessoas só viam o que estava à sua frente, não tinham noção de como era o seu próprio rosto, nem sua imagem frontal por completo. Apenas outro observador poderia descrever a imagem alheia. Imagine quando pela primeira vez algum membro da nossa espécie contemplou seu reflexo na água, o que deve ter pensado e sentido? Se ampliarmos isso para o campo da filosofia, acho que essa reflexão significou um avanço tremendo na consciência humana; Começamos a olhar para nós mesmos, a reparar nas mudanças do tempo, criticar e teorizar sobre estética, até criamos estereótipos de velhice e juventude; imagino o quanto foi impressionante e valiosa toda possibilidade que nasceu desse ato tão simples de olhar-se no espelho.


Obra que possui colorido extravagante e perturbador, cubismo surreal que representa uma das fases mais interessantes do pintor. A técnica pictórica e a escolha da cor parecem-me a representação do espanto ao observar-se no espelho. O lado esquerdo do rosto simboliza a normalidade estética e racional; já a outra metade evidencia a besta que carregamos conosco, o nosso lado obscuro que sussurra palavras inquietantes para lembrar-nos do nosso 'eu' animalesco e primitivo. A feiura que escondemos do mundo e de nós mesmos. Essa garota parece estar vendo algo feio e triste no espelho, podemos até imaginar suas reações nos segundos seguintes; Os olhos umedecidos, ombros caídos, vazio existencial e vergonha de si, pois o feio tanto na época que a obra foi pintada, como ainda hoje não é vista com bons olhos, um tabu que os surrealistas e dadaístas tentaram reverter de várias formas.

Um comentário:

Bel M. V. disse...

Olhar-se ao espelho. Estar por um momento na mais absoluta solidão e ao mesmo tempo acompanhado de tua própria imagem... de repente, à tua frente está você mesmo...um você inanimado, mas que é capaz de te mostrar teus defeitos, tuas fraquezas ou tuas belezas.
Creio que essa atitude cotidiana e banal não passa de um momento de insegurança... mas é algo já arraigado aos nossos passos diários. Insegurança digo, pois não necessitaríamos de confirmar nossa aparência a todo o momento se não carregássemos uma dose extra de insegurança em nossa bagagem.
Estar diante do espelho pode muitas vezes nos causar medo. O medo de confirmar aquilo que te incomoda... um medo tão íntimo, que muitas vezes não dividimos com ninguém, e estar diante do espelho nos faz dividir com quem mais tememos – nós mesmos. Assumir erros, defeitos e imperfeições não é tarefa das mais fáceis.
Estar diante do espelho não traz a mim somente o reflexo de meu corpo físico; muitas vezes traz à tona coisas mais profundas, que habitam escondidas o fundo da minha alma.
Quem diante de um espelho nunca conversou consigo mesmo, expôs seus medos ou confrontou-se com seus defeitos e particularidades.
O indivíduo que pouco se conhece, diante de um espelho está diante de um estranho... parece louco isso, mas acho muito verdadeiro. Tenho medo de muitas coisas que vivem dentro de mim e sei que diante do espelho todas elas despertam e desfilam à minha frente. É difícil também admitir que muitas vezes confronto minhas qualidades – e admitir qualidades é sempre mais difícil do que admitir defeitos - tem dias que me sinto especialmente bonita, e o engraçado disso é que nessas ocasiões o reflexo de meu interior também se torna mais belo.
Tudo isso me faz lembrar quando ainda era criança e minha avó me botava no colo e passava a tarde contando lendas de mitologia... foi assim que conheci a lenda de Narciso. Segundo a lenda de Narciso, contemplar a própria imagem prenunciava má sorte... uma “maldição” quando do seu nascimento, profetizou que Narciso teria vida longa desde que jamais contemplasse sua imagem ao espelho...e no dia em que Narciso involuntariamente contemplou seu reflexo nas águas de um rio, sem saber que se tratava de sua própria imagem refletida, apaixonou-se por si mesmo, o que o levou à morte. E dessa lenda surgiu o embasamento para muitos estudos sobre o comportamento humano... o famoso narcisismo, que pode acometer crianças ou adultos, sendo que nas crianças é um comportamento até que normal na fase de auto-conhecimento, mas nos adultos já se confunde com diversas formas de perversão, até mesmo sexual...amar e desejar a própria imagem como se desejaria o corpo da pessoa amada ou de seu objeto de desejo.
Estar diante do espelho para mim nada mais é do que conhecer-me cada dia mais... me causa medo, prazer, alegria, tristeza...enfim, um turbilhão de sensações, que alimentam a inquietação de meu ser. Com ele posso aprender... conhecer meus próprios defeitos me leva a buscar novos caminhos e novas maneiras de realizar as coisas...um ato aparentemente banal mas que contribui para minha evolução e aprendizado constantes.

Beijo grande menino!!!

Bel Molinari