domingo, 18 de maio de 2008

A indiferença

I
Ela não olha para trás. Despede-se dos seus pais ou amantes, amigos e estranhos da mesma forma, com um sorriso nos lábios com gosto de bala de melancia e sem demonstrar vontade de ficar, evitando prolongamentos românticos e dramáticos, odeia qualquer forma de insistência. Quando ela dá as costas, você pode apostar que em outro assunto já está pensando. Julie é moça feita, cabelos curtos e arrepiados, parece até que levou um susto antes de sair para o trabalho, e isso não deixa de ser verdade. Todo dia percorre os mesmos caminhos até a faculdade, ela optou por isso, se quisesse poderia fazer diferente, mas seu amor pela rotina é maior do que qualquer intenção de mudar. O que a deixa mais angustiada é que mesmo com sua rotina kantiana e aparentemente normal, ela vive numa constante angústia quando sai à rua. Nos momentos que percebe esses surrealismo existencial e o que há por trás das aparências do cotidiano, as vezes pensa que nada faz sentido e o significado que ela mesma dá a vida é banal, suspira e deseja a busca por novas metas, novo emprego, novas amizades, quem sabe começar a ler Goethe ou terminar o Zaratustra; Nessas horas olha para o relógio e apressa o passo, ela não se atrasa, não olha para trás.

O céu esbravejava enquanto Julie esperava pelo seu colega, mal sabia ela que esse encontro ia mudar a sua vida para sempre. Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure. No exato momento em que terminou de ler os últimos versos do seu poema favorito, nota a chegada de Ricardo. Ela fitou seu corpo de cima em baixo, reconheceu que era esse o homem que esbarrou por acaso na livraria onde ambos compraram o mesmo livro. Pele clara, sensível, olhos verdes poderosos, mão grandes e delicadas, boca perfeitamente desenhada, não que ela acreditasse em algo ideal, mas os contornos daquele corpo encaixavam-se maravilhosamente com o seu. Por alguns segundos, antes de lhe pedir para que sentasse disse a si mesma o quanto desejava ser tocada por aqueles dedos, respirou fundo, tentou não ficar sem graça. Ele pediu sinceras desculpas por te-la feito esperar, justificou-se de forma sincera e objetiva, ela já o havia perdoado no momento que viu seu sorriso invadir o café. Conversaram durante duas horas, só perceberam o passar do tempo porque o dia virou noite. Spinoza dizia que essa experiência de não perceber a passagem do tempo quando estamos acompanhados de uma pessoa querida, significa que nós vivemos intensamente, pra valer. Ambos conheciam essa idéia e quando Ricardo fez esse comentário, Julie finalmente enrubesceu, ficou desconcertada porque nenhum outro homem havia lhe dito coisas bonitas de uma forma tão doce, os outros certamente já haviam lhe feito declarações de amor, recitado Vinicius de Moraes e Fernando Pessoa, mas aquela voz era diferente, sensual sem ser vulgar, forte, contundente, arrepiante. Assentiu com a cabeça, não conseguia dizer uma palavra, estava em estado de choque, só queria ouvir Ricardo falar a noite inteira, esquecera até do desejo que ele a tocasse, não havia malícia na vontade de Julie, ela apenas queria companhia indeterminadamente.
II
Se engana quem pensa que um suicida é essencialmente um pessimista, no caso de Felipe o contrário é evidente; Falarei mais sobre isso adiante. A realidade para um sonhador é algo terrível e tedioso, sua vida é uma constante negação do cotidiano em nome de algo que está por vir, mas que no fundo sabe-se que nunca vai chegar, é uma angústia diária. Os amigos dizem que sua maior qualidade é a esperança, essa vontade maciça e permanente de continuar seguindo em frente, por mais que sofra com os ventos contrários, é também seu maior carrasco. Felipe é um péssimo perdedor, gosta de desafios, passa longe dos padrões normais de comportamento. Alguns meses atrás conheceu aquilo que chamam de Troublemaker; Um garoto da mesma idade, mesmo tamanho, mas o que infelizmente ele tinha de mais eram problemas. Psicopatologias irremediáveis a curto prazo e que fariam qualquer ser humano com bom senso se afastar, Felipe insistiu. O relacionamento que tinham era cheio de altos e baixos, não se acostumavam com a paz que – com algum esforço – poderiam proporcionar um ao outro por alguns dias seguidos. Felipe tinha um lema “Jamais fugir dos problemas, sempre enfrenta-los”. Essa ingenuidade lhe custou caro, porque seu parceiro era em si a razão de todos os problemas. E não seria ele inteligente o suficiente para afastar-se desse mal e seguir em outra direção? Jamais faria isso, ele queria ajudar quem tanto amava, não seria pelos problemas – que todos nós temos – que iria partir como um covarde, Felipe sempre olhava para trás querendo mais um abraço como quem quer dizer “lhe dou mais uma chance, não se preocupe” e assim sucessivamente.

O suicídio otimista que geralmente pensava em cometer baseava-se na idéia que existe um outro mundo além desse que vivemos, acreditava também que este lugar seria infinitamente melhor para existir em plena liberdade e paz. A noção de paraíso sempre lhe encantou, pois sua vida geralmente era cheia de visitas ao inferno. Quando já tinha perdido três kg em dois meses e chorava todas as manhãs ao acordar, parou em frente aos seus livros e começou a refletir sobre sua vida, como num filme ele sorriu em alguns momentos, entristeceu em outros e no final constatou que nenhum daqueles tantos autores tinha uma ou mais respostas para suas angústias existenciais, nenhum deles poderia lhe tirar aquela dor que só quem ama mais do que é amado sente. Quando era criança foi muito mimado por sua mãe, recebendo dela todo o amor que uma criança precisa, diria até que ela exagerou ao ponto de poupar-lhe algumas palmadas. Seu pai viajava muito e, portanto sempre foi ausente na construção da identidade do menino, deixando esse trabalho para sua mãe; Uma pessoa doce, sofrida, platônica e o mais importante, ela era resistente a qualquer adversidade. O menino cresceu e não transcendeu muitos valores que obteve quando criança, e os efeitos dessa falta de autocrítica e rompimento são notáveis nos seus relacionamentos com amigos e amantes. Coloca-se numa posição abaixo dos outros, glorificando seus parceiros como Deuses e ele como súdito pronto a amar e servir de bom grado.
III
Julie carregou Ricardo para sua casa, ele estava bêbado e fedendo a cigarro, parecia mais um mendigo em completa decadência do que aquele moço encantador que conhecera semanas atrás. Colocou-o em seu quarto, deitou sua cabeça em dois travesseiros para que ficasse bem inclinada para que se caso vomitasse não engolisse seu próprio vômito. Ele tentou dizer algumas palavras, mas todas eram incompreensíveis para ela que a cada segundo sentia mais vontade de ficar perto daquele Homem que mal conhecia. Depois de aproximadamente uma hora notou que ele estava dormindo em sono profundo. Poderia deixa-lo descansar sozinho e ir dormir em outro cômodo, pensou duas vezes e preferiu deitar-se no chão ao lado da cama e cobrir-se com uma coberta quente. Ela antes de dormir pensou no que estava acontecendo, sabia que não tinha feito isso por mais ninguém e percebeu que Ricardo lhe seria eternamente grato ao seu gesto humanitário, talvez tenha conquistado o seu Amor que só conhecia nos livros.

Meses depois os dois já estavam juntos a tempo suficiente para que Ricardo começasse a pensar em casamento, filhos, e todas aquelas coisas ridículas que se faz e deseja quando amamos e nos sentimos amados. Ambos tinham bons empregos, estabilidade emocional e planos em comum, não podia ser melhor aquele momento em que ele tomou a iniciativa em propor casamento. Ela de repente embranqueceu e não sabia o que responder, sentiu vergonha, raiva, pavor, vontade de sair correndo. Apenas respondeu que era uma decisão difícil e que ia pensar melhor no assunto, e assim fez. Ele a levou até em casa e desejou bom final de semana com um beijo inocente na testa, como se quisesse dizer ‘boa noite, meu anjo’. Logo que chegou em casa ela telefonou para Alberto, estava agitada.
- Ele me pediu em casamento, o que eu faço?
- Recuse, invente alguma coisa e fique comigo.
- Não posso, eu gosto dele.
(alguns segundos de silêncio dramatizaram a conversa)
- Veja bem, Julie, não vou aceitar continuar lhe vendo se você casar, isso já é demais!
- Eu sei...
Sem se despedir desligou o telefone e acendeu um cigarro, estava irritada com a situação que Ricardo havia imposto, mesmo tendo a melhor das intenções. Para que estragar tudo e casar? Precisamos mesmo dessa formalidade? Muitas outras perguntas ela se fez e obteve boas respostas que só fariam bem a ela e prejudicariam Ricardo que só lhe queria feliz e por perto até o fim dos seus dias. No dia seguinte chamou Ricardo para conversar no mesmo café que se conheceram, percebeu em seu rosto um sorriso belíssimo e lhe perguntou por que sorria daquele jeito, pois ele deveria estar angustiado pela resposta que tanto aguardava. O problema é que ele tinha convicção que Julie responderia positivamente. Disse-lhe que estava contente em rever a sua menininha. Ela se sentiu mal por ter que detonar a felicidade daquele rapaz no minuto seguinte. Julie não estava prestes a terminar tudo porque não o amava ou porque tinha mais carinho pelo seu amante, ela desejava se afastar de Ricardo porque ele deveria conhece-la bem ao ponto de jamais querer tocar na palavra casamento, o que para ela significa perda da liberdade, tédio, obrigações, e quem sabe até ser chamada de “minha”, sentia pavor dessas idéias.
- Tenho algo para lhe falar, Ricardo.
(ele parou de sorrir nesse exato momento, ela nunca o chamava pelo nome quando estava contente)
- Fale logo, estou ansioso.
- Eu não quero casar. Quero que você pegue suas coisas e me deixe sozinha.
(Ricardo ficou pálido subitamente, os olhos encheram de lágrimas que não teve como disfarçar)
- Quer, quer um tempo para, para pensar melhor?
- Pensei bem, é tudo que eu tenho para dizer.
Ela levantou-se e jogou sobre a mesa uma nota graúda para pagar a cerveja, provavelmente o troco seria uma lembrança daquela tarde, ela não queria guardar nada daquele dia. Foi embora sem olhar para trás, com o celular no ouvido ligando para o seu amante para combinar um encontro, eles comemorariam fazendo amor e tomando champanhe.

Ricardo deixou seu carro na esquina do café e foi para casa andando, de cabeça baixa, sentindo-se humilhado e vazio. Não reparou os belos pares de seios que passaram por ele ou para o céu com nuvens amarelas que tanto gostava de compartilhar com Julie. Abriu uma caixa de sapato velha no fundo do seu guarda-roupa, pegou o revolver que era do seu falecido pai, pediu-lhe perdão e atirou no coração. Alguns podem até chamá-lo de exagerado e acusa-lo de covardia, mas quem é que sabe realmente o que se passou pela sua cabeça naqueles segundos antes do disparo? Todos morremos sozinhos, ele sabia disso.
IV
Todo escritor usa seus personagens para falar de si, é uma fuga para desabafar, mas quando eu generalizo, também demonstro minha tentativa de fuga, porque prefiro me colocar no meio dos outros e não ser identificado. Talvez a ansiedade de Felipe faça parte de mim, assim como o desespero de Ricardo. E a frieza de Julie? Uma utopia particular que jamais alcançarei, mas que de alguma forma tento realizar por meio desta personagem. O que diferencia Felipe e Julie é que ele quando se sente ferido agarra-se ainda mais ao ser amado e Julie afasta-se de tudo que possa atrapalhar sua paz e liberdade sem pensar duas vezes, usa seus parceiros como passa-tempo, jamais deixa isso transparecer, a não ser quando começa a falar de suas prioridades. A insegurança dela não é apenas interpretada como covardia por seus conhecidos, mas também um jeito de ferir sem piedade aqueles que passam pela sua vida amorosa. De fato, ela segue em frente, sem olhar para trás. Essa indiferença é uma arte que ajuda a viver melhor, um bem estar individual, claro, mas que sem essa atitude ela não iria conseguir viver, faz parte de si. Felipe e Ricardo sofreram até o fim porque ambos sabiam que a vida não é uma linearidade cruel onde o passado e toda dor sentida vão embora no dia seguinte. Para ambos a dor ficaria para todo sempre em seus corações, e desta forma não era mais necessário existir no mesmo mundo que eu insisto em viver. Tudo na vida é simples, a humanidade faz tudo ficar complicado, essas doces palavras de Albert Camus soariam completamente sem sentido para os dois Rapazes.
V
Felipe tinha guardado numa pequena gaveta ao lado do seu computador as cópias das cartas que ele tinha escrito para o seu companheiro e também as que havia recebido. Ambas significavam um tributo ao amor e a vitória da felicidade sobre a tristeza. Pegou cada uma e despiu-se, ficou completamente nu, grudou cada carta em seu corpo e atirou-se da janela do quinto andar. Ele queria eternizar o amor que estava representado naquelas cartas, morreria feliz, pois sabia que estava indo para algum lugar melhor. Ricardo morreu pela falta de amor, e Felipe pela abundancia. Caiu de barriga para baixo, as cartas voaram para longe deixando-o bater contra o chão completamente sozinho.
Se após a morte nós vamos para um outro planeta e temos a oportunidade de tentar de novo, talvez algumas pessoas queiram nunca mais amar, enquanto outras vão guardar na memória a dor por não ter tentado mais uma vez.


Banksy - Bomb hugger

Um comentário:

Juliete Lunkes disse...

Nossa, adorei o conto! Bem legal mesmo. Não costumo encontrar por aí blogs que tenham contos, ou pelo menos contos tão interessantes, e olha que passo o dia procurando blogs por aí!

Ah, a propósito, meu nome é Juliete, mas não gosto muito, todo mundo me chama de Julie =)

(nao dá pra deixar scrap pra ti)